Mãos do Cacau

O dia ainda não nasceu no assentamento Antônio Conselheiro quando Maria coloca na sacola plástica a marmita de Jonas. A fumaça que sai do coador de pano, espalha o cheiro de café pela cozinha, despertando os sentidos daqueles que ainda estão sonolentos. Em breve Jonas cruzará as ruas de terra ainda cobertas pela neblina de julho até chegar na sua roça de cacau onde contará com a ajuda de outros agricultores para a colheita. Por aqui, os mutirões comunitários são comuns.

A 8Km dali, sob a luz amarela de um poste, Didico esfrega as mãos para espantar o frio enquanto aguarda por Samuel. Sua espera não é longa e logo ele vê o farol da moto que vem atravessando a densa neblina, monta no veículo que segue sem demora para Camamu, aonde encontrarão Jonas.

Os homens entram na floresta juntos com os primeiros raios do Sol da manhã, seguem em silêncio pela picada porquê já sabem o que deve ser feito. O canto intercortado, estridente dos tucanos e os passos na lama são a trilha sonora da caminhada, até que Didico escorrega e cai sentado, provocando uma gargalhada geral.

– Se cair, do chão não passa, Gritou Samuel com sua voz fanha.
– Recebo! Retrucou Didico, limpando a calça com batidas das mãos, ferido unicamente em seu orgulho.

Jonas fez um comentário correlacionando o canto de acasalamento do tucano com o tombo de seu amigo, mas talvez, por desconhecer as gírias locais, não entendi a brincadeira. A marcha seguiu por mais cinco minutos pela floresta até chagarmos à primeira bandeira que é nome dado as montanhas de cacau que estão ali a espera do facão que separará as amêndoas da casca.

O trabalho na roça, suscita todo tipo de conversa. Bravatas de pescarias, vida alheia, causos de outros tempos e até o mundo sobrenatural servem de anestésico para as atividades pesadas do manejo do cacau. Enquanto proseiam, os homens executam suas tarefas num modo automático sem reclamar do trabalho, mas vez por outra fazem um comentário sobre a qualidade dessa ou daquela cabaça comparando-as com as de antigamente.

A medida em que as horas passam, a presença da câmera começa a ser esquecida, a conexão com os sujeitos a quem retrato me dá um manto de invisibilidade que estimula a naturalidade das pessoas. É nessa hora que o ritmo do trabalho documental começa a fluir e foto após foto me aproximo da personalidade de cada um. Minha concentração só é quebrada pelos borrachudos que cismam em ignorar o repelente que estou usando.

Dos três, Didico é o mais brincalhão. Samuel o mais calado e Jonas adora as frases de duplo sentido. Esse grupo heterogêneo forma um time altamente produtivo que habilidosamente maneja o cacau e em questão de 6 horas, produzem centenas de quilos de amêndoas prontas para serem fermentadas. Em pouco tempo, o chocolate produzido com esse cacau poderá ser comercializado nas lojas de São Paulo, destino final dessa colheita.

A mão humana é composta por um sistema refinado de 27 ossos e músculos que nos capacitam a realizar tanto tarefas de força quanto de precisão extrema. O movimento de pinça, possível graças ao polegar, deu-nos incrível habilidade para manusear ferramentas e moldar o ambiente ao nosso redor. As milhares de terminações nervosas as palmas e dedos, nos dão o tato, que aumenta nossa percepção do mundo. A essa parte do corpo também é atribuído o poder da comunicação não verbal, intensificando aquilo que é dito. Como seria possível nosso desenvolvimento pessoal ou até mesmo do Homo Sapiens sem essa maravilhosa peça de biomecânica: a mão?

Durante os dias em que estive acompanhando essa colheita, produzi exatamente 1032 fotografias e mais tarde ao revisa-las, percebi que em muitas delas a relação do homem com o cacau se dava através das mãos. São imagens poderosas, que revelam muito sobre a vida de seus donos; mãos calejadas, sujas, meladas e fortes, que não temem o trabalho. Vez por outra, mesmo imundas, levavam também o cacau in natura à boca de seu dono.

No momento em que escrevi esse texto, meus dedos percorriam o teclado com uma habilidade específica, adquirida há muitos anos durante minhas aulas de datilografia, quando ainda era adolescente. O controle motor que exibimos em nossas atividades diárias, são fruto de uma contínua repetição conhecida como memória muscular, a mesma que me permite digitar velozmente e também garante a Didico uma precisão cirúrgica para acertar a cabaça com um facão a poucos milímetros de seus dedos.

No fim do dia, pondo um ponto final nas atividades, lavamos todos as mãos com o que sobrou de água nas garrafas térmicas antes de partirmos. A beira da BR, me despedi de Samuel e Didico que subiram na moto e sumiram de minha vista dali a 300 metros numa curva para a esquerda. Segui de carro com Jonas no sentido oposto rumo a Antônio Conselheiro. À porta da casa simples de chão batido estava Maria, mesmo recém chegada da casa de sua cunhada já nos havia preparado um cafezinho que bebemos ali mesmo em copos americanos.

Foi com um nó na garganta que me despedi de Jonas e sua mulher. Sabia que deixaria aquelas pessoas maravilhosas para trás e muito tempo se passaria até que pudesse eventualmente revê-las. O crepúsculo já se fazia presente naquele momento em que liguei o rádio do caro. Imediatamente, através do Spotify “Ave Maria” interpretada por Yo Yo Ma foi reproduzida pelos alto falantes, enchendo de tristeza meu peito e deixando meus olhos perdidos no horizonte da estrada. Por dois minutos e meio não fiz nada além de seguir a diante e me conectar com aquele sentimento potencializado inúmeras vezes pela linda música do grande violoncelista.

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Veja essas e outras fotos do Cacau Amado
– https://www.flickr.com/photos/picsartbr/albums/72157688012214804